Exibido em 2011 na Mostra Internacional de São Paulo, O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz (Madame Satã, O céu de Suely), inspirado na canção Olhos nos Olhos de Chico Buarque, finalmente obtém lançamento no circuito nacional e dobra a segunda semana de exibição no Cinema de Arte. Exemplo de um cinema de provocação em que até o óbvio fascina
Assim como na tradição trovadoresca da cantiga de amigo, Chico Buarque e outros compositores da música popular brasileira adotaram a estratégia de escrever suas canções na perspectiva do eu lírico feminino. É o caso da canção Olhos nos olhos, ponto de partida para a elaboração do argumento de O Abismo Prateado, novo longa do diretor cearense Karim Aïnouz. Na composição de Chico, uma mulher canta ao seu interesse amoroso o quanto passa bem sem ele, ao passo que, paradoxalmente (ou não) o chama de volta se ainda a quiser.
Estrelado por Alessandra Negrini, O Abismo Prateado acompanha um dia na vida de Violeta (Negrini) – dentista bem sucedida e mãe de um garoto de 14 anos – após descobrir por uma mensagem de voz ter sido abandonada, sem mais nem menos, pelo marido, Djalma (Otto Jr.). Violeta, meu amor; eu estou indo embora; eu não vou voltar; depois de Porto Alegre eu vou pra… Sei lá… Pra Patagônia; a verdade é que eu não te amo mais; eu estou sufocando do teu lado; não me chama de volta porque senão eu volto e a gente afunda junto; Violeta, eu não te amo mais; eu não te amo mais; eu não te amo mais, diz a voz distante de Djalma no celular.
No primeiro plano do longa, embalado pelo som melancólico e solitário do oceano, Djalma nada sozinho em um mar desabitado de coloração prateada na praia de Copacabana; as ondas investem-se contra ele em envergaduras de metros de comprimento. Solitário, sufocado, Djalma mergulha contra as ondas, até que, exausto, sai do mar em direção ao apartamento. Simbolismos pictóricos como esse, que variam do sutil ao óbvio, perpassam todos os minutos de projeção em O Abismo Prateado e imprimem uma qualidade que poucos cineastas no contexto atual podem se vangloriar de possuírem: rigor e controle absoluto da imagem como objeto.
Eu não sou cachorro não (leia-se: um dia de cão)
O que interessa a Karim Aïnouz é a jornada de Violeta. Ela acorda, faz amor com o marido sem saber que seria pela última vez, toma café da manhã, se despede, sai de bicicleta para o trabalho, vai à academia e recebe a notícia. O que se sucede é laboratório, o cineasta testa sua protagonista em níveis de tolerância ao passo que lhe convence a abraçar de vez (e aceitar) a solidão.
Fotografado com bastante frontalidade, Aïnouz casa o estatuto da imagem com o estatuto do som para construir uma atmosfera opressora e claustrofóbica. O rosto de Alessandra Negrini, trabalhado em quadros fechados que vão se abrindo ao longo do filme sugere, assim como o roteiro, o cumprimento da tal jornada da aceitação. O Abismo Prateado é um filme sensorial; adotando uma estratégia de som em que os ruídos externos se sobressaem aos sons emitidos pelos próprios personagens (estratégia sonora que progride junto à fotografia), o cineasta acentua e destaca a opressão que o silêncio da solidão impõe em sua narrativa.
Mesmo sendo um tanto quanto didáticos, os simbolismos que Karim imprime na tela invariavelmente admiráveis. Detalhes que surgem fugazmente ao longo do filme servem como ferramentas narrativas imprescindíveis, principalmente quando tratamos de um filme de argumento tão simplista, calcado nos signos visuais e na força das atuações. São detalhes óbvios como a queda de bicicleta, a conversa com a taxista e o encontro com os dois personagens no terceiro ato; ou sutis como o relógio do marido, o sorvete (Sorvete é bom né? Faz a gente feliz. Não quero saber de dor! , diz Violeta a uma de suas pacientes em determinado momento da narrativa), a dança como catarse, a rima narrativa dos nomes dos personagens (Djalma e Nassir) e até mesmo uma cena de novela que surge em uma TV ligada. O Abismo Prateado é, por fim, um amontoado de simbolismos que mascaram uma trama simples que nunca cansa de fascinar o espectador.
Foi-se o tempo em que Karim Aïnouz era apenas uma promessa no cinema nacional. Hoje, consagrado como autor, o cineasta realiza até em seus filmes menores, como é o caso de O Abismo Prateado, um cinema de provocação em que até o óbvio fascina. Disse e repito, são raros os “Karims” no cenário audiovisual contemporâneo.
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